Inferno
Pedrógão, dois meses depois
John Gallo
17 de Agosto, 2017
Pouco antes das sete da tarde um uivo de cortar a respiração invadiu a aldeia. Vinha acompanhado de um vento capaz de derrubar qualquer um. Não houve alma que não sentisse que este poderia ser o fim. Dizem os populares que jamais terão ouvido semelhante grito de morte. Em segundos as árvores ao redor da aldeia incendiaram-se como fósforos, labaredas com dezenas de metros consumiam mimosas, eucaliptos e pinheiros, nada resistiu. Aonde o lume não tocou, o calor derreteu persianas, incendiou jardins, aqueceu portões de metal de tal forma que tocar-lhes provocava queimaduras graves. No desespero imposto pelo Inferno de circunstância, dez fizeram-se à estrada nacional 236-1, fugindo de uma morte anunciada. Percorreram pouco mais de setecentos metros até morrerem carbonizados.
Numa faixa de 400 metros da N 236-1 morreram todos, dez. A décima primeira vítima de Pobrais, Vítor, morreu no número 218 da rua principal da aldeia.Dormia, terá sido acordado pelo uivo do monstro, tentou fugir para junto de uma janela, de nada lhe valeu. A sua casa, como tantas outras nas aldeias vizinhas, foi consumida pelo fogo em segundos. O primeiro andar com chão e estrutura de madeira ruiu, caindo desamparado no piso térreo. Retorcidas, as camas de ferro e as molas de colchão ficaram para contar a história de quem nelas se deitava.
Na 236-1 quem conseguiu escapar diz que aquilo que viu pelos retrovisores não tem par: corpos que se incendiavam instantaneamente assim que, em desespero, tentavam abandonar os seus veículos.
Estes 400 metros da N236-1 estão agora alcatroados de fresco, de negro pintados, para esconder as marcas que ficaram da fatalidade ali acontecida – pediu a população que assim fosse, tinham as autoridades reparado apenas as áreas afetadas pelos carros carbonizados. 400 metros de negro tingidos, luto pela morte de quem dela tentou desesperadamente escapar. Podia ter sido qualquer um de nós, qualquer um dos nossos.
Pobrais foi apenas uma das aldeias em que esta tragédia inenarrável, inaceitável e incompreensível aconteceu. Repetiu-se em aldeias vizinhas, entre o Pedrógão, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos.
Dois meses depois está o mato cheio de fetos, verdes, viçosos. Diz quem lá vive que daqui a um ano não vai ser possível entrar na floresta, como sempre. Diz quem lá vive que este rastilho vivo, logo que seco pelo rigor de um verão português, garante que a tragédia de Pedrógão se repetirá.
Este ensaio, que retrata apenas parte da zona afetada pelo incêndio que lavrou uma semana e consumiu 410 quilómetros quadrados de terreno – uma área quatro vezes superior ao concelho de Lisboa, reflecte o impacto disforme desta tragédia nos três concelhos mais afetados, Pedrógão, Figueiró e Castanheira.
Este foi o décimo primeiro incêndio mais mortal desde 1900, em todo o mundo.
A nível europeu, o fogo de Pedrógão Grande é o terceiro com maior número de vítimas, apenas ultrapassado pelos incêndios na Grécia no Verão de 2007, quando morreram 68 pessoas e pelos fogos na região de Aquitânia, em França, em 1949, em que 80 pessoas perderam a vida.
Para nós, Floresta Negra, alertou-nos para o facto de ser imperioso trabalhar com as camadas mais jovens da população para garantir que a necessária mudança de atitude face à floresta se consubstanciará numa geração, bem como, sabendo que tragédias como esta irão voltar a acontecer, trabalhar com as populações locais, não só ao nível da prevenção como temos feito, mas igualmente ao nível das ações e atitude a tomar sempre que o fogo lhes bate à porta. Como agir na presença do incêndio para proteger família e bens, quando possível.
Quem perdeu a vida nesta imemorável calamidade não a pode ter perdido em vão.
Fica uma nota, sentida, para todos aqueles que viram partir entes queridos neste infortúnio pelo qual todos somos, solidariamente, responsáveis.
Ensaio em completo em www.johngallo.co.uk.